É-me difícil
escrever sobre a minha infância. Quando o faço, debato-me sempre com problemas
de consciência, pelo receio de deturpar a realidade dos factos que por vezes,
aos olhos duma criança, tomam uma dimensão muito superior. Além disso, posso
não recordar, com clareza, os factos que estariam por trás de certos episódios
que me marcaram. Contudo, apesar de ter ficado com o peso desses factos que me
magoaram relativamente, por exemplo, a atitudes do meu Pai, reconheço, sem
sombra de qualquer dúvida, que tudo o que fez por mim reflectia um grande amor
e uma forte convicção de que estaria a fazer o que, no seu
entender, estaria certo. Claro que este seu endender deveria - se o
fizesse - ser julgado no contexto da época Salazarista em que vivi a minha
infância, na forma como ele próprio foi educado, etc., etc. Mas eu prefiro não
ir por esta estrada, cuja entrada procurarei manter cerrada, pois o que conta,
para mim, é o grande amor que ele tinha pelos seus filhos. Optarei, portanto,
por ir referindo pequenos episódios vividos, sem a intenção crítica de
julgá-lo, pois não estão, na minha memória, quaisquer actos que o merecessem.
Mentiria, porém, se escrevesse aqui que não as tenho.
O que
escrevia, já na infância reflectia uma certa tristeza, uma tendência para a melancolia.
Mas isso não era o que eu desejava transparecesse de mim, porque estava em
perfeita contradição com a minha simpatia, a minha alegria e a forma como
vivia,
Já em
criança, o meu papel de "palhacinha" da família. Bem no fundo daquele
ser pequenino, estava uma grande alma, duma sensibilidade enorme, mas com muita
tristeza à mistura. Tenho a impressão que parte dessa melancolia nasceu nos
dias em que faleceram, com uma diferença de seis meses, uma priminha, com dez
de idade – à direita na foto - e o meu querido avô, com 56 anos.
Costumo
dizer que fui a criança que mais amei na vida até ser mãe, contudo, vivi uma
infância de medo e de disciplina. Medo, sobretudo, da professora de instrução
primária, a quem o meu pai pôs o cognome de "Doninha" e a qual
defendia a teoria de Salazar segundo a qual "umas palmadinhas dadas a
tempo...." não faziam mal à criança ... Devem ter-lhe dado poucas!...
As
fotografias de Salazar e do Marechal Carmona estavam dependuradas na parede
da minha sala de aula, na escola primária, mesmo em frente da minha secretária.
Eu era muito pequena, mas aquelas duas figuras tinham, na minha sensibilidade,
o peso da disciplina de que era uma vítima perfeita. O cenário vivido na escola,
durante a minha infância, era pesado, muito pesado. Tão pesado quanto a
expressão grave daqueles dois rostos, para os quais evitava olhar. Talvez por
isto, há regras que nunca segui na educação dos meus filhos, por considerá-las
demasiado rígidas. Elas fizeram de mim uma criança medrosa. Passava noites com
um medo atroz do desconhecido, das sombras, da noite. Só conseguia adormecer se
ouvisse a minha mãe a arrumar a cozinha ou a costurar, mas muitas vezes
acordava de noite a tremer e os meus Pais tinham de levar-me para a cama deles,
tal era o meu estado psicológico. Medo porque, no dia seguinte, teria de
regressar novamente à escola onde "a doninha" era uma ameaça à minha
serenidade e à das pequenitas minhas colegas.
A minha
adolescência dava para escrever um longo livro. Se teria interesse lê-lo, não
sei dizer, mas que ocupa uma grande parte das minhas recordações mais bonitas, apesar
de tudo, isso posso afirmar. Todavia, talvez por estar marcada pela infância
que descrevi, também teve muitos momentos de incertezas, de medos e de
desesperos que eu tentava rejeitar porque, a minha essência, era a duma criança
alegre e positiva, que tentava sempre sair dos 'dramas' através do meu
acreditar que a vida é bela demais para vivê-la triste.
Os poemas
que escrevi, durante a minha adolescêcia, são coisinhas da idade da
"gaveta", ou do "armário", como lhe chamam. A sua
importância limita-se ao facto de manterem vivas recordações que ainda hoje me
deliciam, amores de adolescente, sentimentos enfatizados que a muitos farão
rir, mas que a mim fazem reviver tempos de muito sofrimento, por um amor
proibido. A 'pretensão' posta nos poemas que escrevia, em forma de soneto, a
sua carga dramática, a pureza desse amor, a mágoa que inspira o facto de ser
proíbido pelos pais de ambos ou até mal interpretado por mim, nesse tempo, são
detalhes que, na altura, pesaram muito. Mas foi mesmo amor, amor verdadeiro, o
que senti por alguém que desconhecia amar-me também. E escrevia, escrevia, até
altas horas da noite, para que no dia seguinte pudesse trocar com ele esses
bilhetinhos clandestinos, às escondidas dos nossos pais que viravam terramoto,
não fossem os estudos acabar afectados. E escrevia ...
DESILUSÃO
Grande é o mistério que envolve o meu segredo
Pois, mesmo eu, já não sei se o compreendo.
Minha vida, transformada num degredo,
É enorme confusão que não entendo.
Da minha dor culparei somente a vida,
Pois cobrindo-a com o véu da ilusão,
Escondi atrás de si a falsa lida
Em que andava, ocupada, a ingratidão.
(vá-se lá saber porque escrevi isto....)
E, ao caír esse véu que faz sofrer
Todo aquele que confia em seu poder,
Fazendo dele um jardim para sonhar ...
Acabei por destruir minha ventura,
Não vendo mais o valor, nem a ternura,
Que tem um coração que sabe amar!
Grande é o mistério que envolve o meu segredo
Pois, mesmo eu, já não sei se o compreendo.
Minha vida, transformada num degredo,
É enorme confusão que não entendo.
Da minha dor culparei somente a vida,
Pois cobrindo-a com o véu da ilusão,
Escondi atrás de si a falsa lida
Em que andava, ocupada, a ingratidão.
(vá-se lá saber porque escrevi isto....)
E, ao caír esse véu que faz sofrer
Todo aquele que confia em seu poder,
Fazendo dele um jardim para sonhar ...
Acabei por destruir minha ventura,
Não vendo mais o valor, nem a ternura,
Que tem um coração que sabe amar!
Setembro de 1953
Nota-se aqui a influência da minha leitura de sonetos, que devorava com um interesse pouco comum na minha idade. Aos 13 anos eu já adorava ler Camões e a partir dessa idade, sempre que me era pedido, na escola, para fazer uma composição, essa composição era feita em verso. O que escrevia, em forma de poesia, reflectia uma carga de grande tristeza, acredito que em consequência duma adolescência mal vivida. Talvez por isso, passei a minha vida em busca do caminho certo, duma estrada adequada ao comprimento dos meus passos, mas o que mais encontrei foram atalhos cheios de obstáculos, que procurei melhorar tanto quanto a minha vida me permitiu, para que o caminho a percorrer não fosse tão doloroso.
Maria
Letr@
2 comentários:
OBRIGADA PELA VISITA ...A VANUZA É UMA QUERIDA ... MUITO PRAZER MARIA LETRA...
FOI UM PRAZER CONHECER TÃO EXTREMOSA MÃE ORGULHOSA DE SEU REBENTO... MUITO BONITO E DIGNO DE SER LER...
PARABÉNS MÃE E MARIA
Muito obrigada, PedrasNuas, pelo seu comentário. Já fui ao seu blogue, de que gosto muito e referi uma confusão que tinha feito quanto a um dos seus blogues. No dia em que lá fui estava, exactamente, com febre, por causa da gripe e 'meti água'. Mas está tudo esclarecido.
Um grande beijinho.
Maria Letra
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