N.º de registo: 802
O SILÊNCIO DOS CORVOS
Oriundo duma família abastada, Aabdeen formou-se em Medicina muito
jovem ainda, com uma média da qual se orgulhava e tinha orgulhado os
seus pais. Tinha optado pela investigação científica, razão pela qual
continuou a estudar, mesmo depois de completar o curso que escolheu.
Ávido de atualizações constantes, não tinha a preocupação de saber até
onde deveriam chegar os seus conhecimentos. Era um homem honesto, amigo
da sua família - que sempre respeitou - e muito considerado no meio
científico pelo trabalho que estava a desenvolver, em busca da cura de
doenças que se mantinham difíceis de debelar. Ele tinha consciência de
que a área a que se dedicou envolvia interesses de vária ordem, mas ele
sabia, também, que a sua dedicação lhe vinha da alma e,
consequentemente, entregou-se a esse trabalho duma forma total e
incondicional. Mesmo sabendo que tanto a medicina alopática, como a
alternativa, são controversas e as curas até então dadas como eficazes,
questionáveis, o que importava era entregar-se a essa tarefa com
consciência absoluta dos objetivos a que se propôs quando escolheu
aquela especialidade. Sabia muito bem que durante longos anos
continuaria ainda a dúvida sobre o que era, ou não, desejável e eficaz,
quando de doenças graves se tratava. Aabdeen insistia na busca de
respostas, explorando causas e efeitos que lhe permitissem chegar onde
queria: à descoberta de curas até então não conseguidas. Vivia uma vida
feliz, fazendo com verdadeira paixão aquilo de que gostava. Era casado
com Safá, uma ex-colega da Universidade de Oxford, no Reino Unido, onde
estudaram os dois. Ela era uma mulher cheia de virtudes, a quem podia
confiar a educação dos seus 5 filhos; era a mulher com quem, qualquer
homem, desejaria ter casado. O seu amor e a paixão que sentia por ela
tinham sido a melhor coisa que lhe tinha acontecido. Amavam-se muito e
viveram muito felizes até ao malfadado dia em que iniciou a guerra que
viria a descontrolar completamente a harmonia do seu lar.
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Aabdeen acordou eram 4h da madrugada. Tinha adormecido vestido, em cima
daquela cama massacrada pelas suas voltas e reviravoltas em busca duma
inspirada ideia que o libertasse, a ele e à sua família, da guerra que
estava a destruir o seu país havia já seis longos anos. Tratava-se duma
guerra cujos invasores tinham propósitos que nada tinham a ver com
problemas internos do país. Os interesses dos invasores seriam bem
outros, assaz difíceis de aceitar ou mesmo de compreender pela sua
complexidade, mas que não escapavam à observação dos mais informados.
Era uma guerra permanente, sem aparente solução, que tinha espalhado o
terror e a desordem num país onde, até ao seu início, se vivia
pobremente, mas em paz. Seus pais tinham falecido há 2 anos,
aproximadamente, vítimas de um dos bombardeamentos e a sua mulher
estava, agora, bastante doente. Ele não sentia conseguir ter a paz e a
concentração necessárias para suportar continuar a viver assim, entre
paredes testemunhas silenciosas dum sofrimento sem tréguas. Tinha uma
enorme responsabilidade às suas costas. Os seus 5 filhos careciam duma
protecção que, sozinho, não estava a conseguir dar-lhes. Sabia que iriam
continuar a ouvir, por tempo indeterminado, o som do já longo período
de bombardeamentos contínuos, contra um país sacrificado. Guerra por
quê? Contra quem? Onde estavam os alvos a atingir? Seriam justas as
causas dessa luta que estava a assassinar tanta gente, gente essa
vivendo há tantos anos a angústia de poder ver chegada, em qualquer
momento, a sua hora de morrer, também, sem culpas? Com que coragem
continuavam os verdadeiros responsáveis a engendrar sucessivos
discursos de consciencialização dum povo maioritariamente ignorante, sem
respeito por quem, entre estes, já tinha há muito percebido bem quais
os hediondos objetivos duma escumalha de corvos sedentos de interesses?
Discursar para convencer quem? Aqueles em quem a ignorância se instalou
sem bilhete de regresso? Aqueles que acreditavam nas verdades mentirosas
que despejavam pela boca fora? Era já insuportável ouvir – quem ainda
tivesse essa possibilidade... - os discursos que, tal como os
bombardeamentos, eram “cozinhados” por países envolvidos naquele
massacre atroz. Aabdeen já não estava em condições de querer saber quem e
o que estaria por trás dos bastidores daquela guerra. Urgia descobrir o
que fazer para salvar a sua família daquele calvário. Enquanto Safá
teve o controle do lar e da família, Aabdeen pôde trabalhar, ajudando
nos hospitais os sobreviventes daquela maldita guerra. A partir do dia
em que Safá adoeceu, ficando impotente para tomar conta da casa e dos
filhos, convenientemente, a instabilidade emocional deles e dela
própria, instalou-se no seu lar e ele sofreu um rude golpe. A despeito
da realidade duma guerra cujo fim continuava imprevisível, até ali tudo
tinha continuado de forma mais, ou menos, suportável. Com a colaboração
da mulher, em casa, Aabdeen pôde permanecer nos hospitais ajudando os
sobreviventes, sempre com uma entrega e uma dedicação sem limites. Mais
do que preocupar-se com os temíveis responsáveis por essa guerra,
Aabdeen tinha a sua mente ocupada com cada caso que se lhe deparava
naquele banco de urgências onde procurava salvar vidas mesmo tendo
consciência de que poderia estar a fazê-lo a alguém que, eventualmente,
acabaria morrendo quando transpusesse a porta do hospital. Os
responsáveis, esses continuavam, obviamente, a salvo afim de poderem
alimentar aquele estado de sítio em que viviam e que se sentia em cada
corpo que caía por terra. Os bombardeamentos a que, malogradamente, se
habituaram, continuavam com a mesma intensidade com que se tratavam
vidas cujas almas já estavam mais no espaço do que dentro daqueles
corpos sofridos. Com a saúde da sua mulher, partiu aquilo de que Aabdeen
sempre se havia orgulhado: o controle emocional da família que, a
despeito da guerra, continuava a sobreviver, enquanto ele salvava – ou
não – vidas que, diariamente, entravam naquele hospital local.
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A casa de Aabdeen foi bombardeada nas primeiras horas da manhã dum
fatídico dia tão frio quanto o coração daqueles que, com uma coragem
selvagem, perpetram habilidosa e inteligentemente meios para conseguir
os seus ardilosos fins. Felizmente ninguém saíu ferido, mas o trauma
daquelas crianças foi enorme. Querendo pôr a salvo a mulher e os filhos,
Aabdeen negligenciou tudo, e procurou libertá-los daquele monte de
escombros, poeira e cheiro a queimado. Saiu para a estrada em busca de
refúgio para a família. Impossibilitada de caminhar, Sagá era o seu
maior problema. Com a ajuda de algumas pessoas, conseguiu levá-la a ela e
aos filhos para uma área comum onde dezenas de outras famílias
passariam a viver. Aabdeen tinha, agora, a sua missão mais complicada,
pois além da sua família, tinha também de cuidar de quem com eles
partilhava aquele antro de vidas humanas com um inimigo comum: a guerra.
Todas as ajudas ali eram poucas e inconsistentes. Aabdeen sabia que,
de certo modo, a amplitude das suas muitas aspirações humanitárias de
pesquisa científica, para salvar vidas, estaria condenada, até que a
guerra acabasse. Se, por um lado, a sua consciência de médico e de
cidadão o atraía aos hospitais, por outro lado tinha a consciência de
que a sua responsabilidade tinha passado, então, a ser maior. Ele não
poderia abandonar a sua família. Quando a guerra iniciou, o seu filho
mais velho tinha 3 anos, o do meio tinha 21 meses e os mais novos,
gemeos, tinham 5 meses. Depois da sua casa bombardeada, apoderou-se dele
o desejo crescente de emigrar. O clima que se respirava naquele espaço
cheirava a um ninho feito das penas dos mesmos corvos que cantavam
discursos que já ninguém queria ouvir. Eles tinham conseguido dinheiro
suficiente para conseguirem libertar-se e, portanto, havia que pôr em
prática um plano de fuga. Com os aeroportos encerrados, Aabdeen via a
sua possibilidade de sair do seu país diluir a olhos vistos. Mais
ainda, o estado de saúde de Safá piorava de dia para dia e ele não
sabia o que fazer. Depois da morte de seus pais, ele nunca mais teve
notícias do seu irmão, o que o levava a admitir a hipotese de ter
morrido também. Aabdeen sentia-se como que enfiado num labirinto com a
família, sem saber qual direção tomar. Qualquer que fosse a sua decisão,
exigia dele uma responsabilidade muito grande. Embora estivesse
consciente de que a saúde da mulher estava em perigo e que só num país
que não estivesse em guerra conseguiria tratá-la convenientemente, ele
continuava sem poder fazer fosse o que fosse. Seguindo o exemplo dos
pais, qualquer decisão passaria pela prévia convicção do que mais
conviria à família e, portanto, ela deveria passar por um acordo entre
ele e Safá. Haveria que ponderar bem os riscos a que submeteria a sua
mulher e os seus filhos, qualquer que fosse a decisão que tomasse. Mas
Aabdeen era um homem de profunda reflexão e sempre que se lhe deparava
um problema exigindo ponderação, recorria a três pilares de sustentação
da posição a tomar: a vontade da família, a consciência do que mais
convinha a todos e tanta coragem. Era um bom gestor de
responsabilidades, todavia, a que deveria tomar, urgentemente,
ultrapassava os
limites da sua capacidade de decisão. A crescente
instabilidade no comportamento das crianças, era evidente. Ele sabia que
a atmosfera que se havia gerado com a guerra, com o ruído dos
permanentes bombardeamentos, a doença de Safá e a sua consequente
fragilidade ao cenário e, por último, a destruição da sua casa, havia
desencadeado o caos emocional na família. Não foi fácil decidir, mas
Aabdeen optou, definitivamente, por emigrar. Urgia levar a mulher para o
hospital dum país onde não houvesse guerra, onde o silêncio dos corvos
fosse uma realidade. Não queria ouvir mais o ruído atroz dos
bombardeamentos que calavam as crianças e as aves e onde o silêncio era
tão desejado quanto o pão que os alimentava. Tendo optado, finalmente,
por deixarem o seu país e refugiar-se com a família no Reino Unido,
voltando a Oxford, aproveitaram a abertura de um dos aeroportos locais e
deixaram para trás a dor, o terror e a instabilidade em que cairam.
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Depois duma longa espera de 3 dias para saber o resultado dos exames
feitos à mulher, Aabdeen enfrentou a realidade de um diagnóstico que já
esperava. A anemia de Safá era crítica e ela deveria ser submetida a um
tratamento muito rigoroso, durante bastante tempo. Contudo, animava-o o
facto de estar convencido de que a opinião dos médicos do Hospital de
Oxford, onde sua mulher estava internada, e a sua, eram de tal modo
animadoras que o futuro se lhe afigurava bastante menos pesado do que
aquele que viveu anteriormente, vendo Safá a piorar de dia para dia.
Alugou uma casa em Oxford e procurou emprego na sua area, a da
investigação científica. Matriculou os filhos num bom colégio, naquela
localidade, onde tudo lhe parecia, agora, muito mais fácil. Safá ficou
internada durante algum tempo. Já não existia nela aquela obstinação de
não querer separar-se dos filhos, nem a sua recusa de submeter-se ao
tratamento de que carecia. Para trás ficou o país que amavam, mas onde a
vida era um inferno. O terror implantou-se naquela terra de maldição.
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Safá deixou, finalmente, o hospital e regressou ao lar que seu marido e
seus filhos tão bem haviam decorado para recebê-la. Em cada canto da
casa respirava-se o amor e a paixão com que o fizeram, para que ela se
sentisse bem e feliz.
Aabdeen, Safá e seus filhos eram, agora, mais
uma nova família a viver num país que não era o seu, mas onde sentiam,
duma forma profunda, o significado do silêncio dos corvos e duma paz
genuína conseguida através da cooperação e de sãos objectivos e não de
discursos recheados de promessas despidas de autenticidade. Para Aabdeen
o trabalho de investigação científica era, agora, uma realidade. Ele
tinha conseguido, finalmente, juntar-se a outros cientistas para poderem
em conjunto, duma forma mais universal, trabalhar para a descoberta de
curas por que a humanidade anseia.
FIM
Maria Letra