De velhas raizes minhas,

umas vivas, outras mortas,

retirei ervas daninhas

p’ra poder abrir mais portas.


20091212

A MINHA PRIMEIRA DESILUSÃO

Tinha acabado de chegar, com os meus pais e a minha irmã, a casa duns amigos de família, em Vieira de Leiria, localidade onde nasceu meu pai e onde iríamos passar o fim-de-semana. Recordo a dona da casa, esposa dum amigo do meu pai, vestida de escuro, com um lenço preto amarrado na cabeça e cruzado na frente, tapando-lhe parte de uma das faces. Estava a lavar a louça. Puxei-lhe a saia e perguntei-lhe:



- Como te chamas?
- Chamo-me Lola.
- Ó Lola, dá-me água.

Dado que estava com anginas e com bastante febre, alguém deve ter-lhe feito qualquer sinal, porque a água não me foi dada. Minha mãe pegou-me ao colo e levou-me para uma das duas camas do quarto onde iria dormir com a minha irmã. Ainda hoje seria capaz de descrever como era o quarto, embora minha Mãe me tenha assegurado que eu tinha, apenas, dois anos de idade.

Já de pijama e sentada na cama, esperava a tão desejada água, mas a água tardava a chegar. Eu via a Lola, do ângulo em que me encontrava. Continuava na banca da cozinha, a lavar a louça. Decorridos alguns minutos - não tenho consciência de quantos mas pareceram-me uma eternidade - minha mãe entra no quarto com uma chávena almoçadeira, com sopas de pão em leite quente. Escusado será dizer que gritei como uma desalmada, porque ter-me sido negada a água que tanto desejava, substituindo-a por leite quente, representava, para mim, uma traição. Não era do leite quente que eu estava à espera, mas minha mãe receou que, com alta temperatura, a água fria me fizesse mal. Hoje, com quase 93 anos e uma alimentação muito saudável, minha mãe seria incapaz de fazer o que fez. Sabe muito bem o que devemos ou não fazer para mantermos a saúde ou tratarmo-nos quando estamos doentes.

Um relato da minha infância, uma primeira desilusão a que se seguiram tantas e tantas outras. Contudo, esta teve um sabor a engano e será, talvez por causa deste simples episódio, que ainda hoje não suporto que alguém tente lançar-me poeira aos olhos ... Amo a frontalidade e a verdade, mesmo que cruéis.



Maria Letra
Londres, 29-07-2009
Fotografia de Miguel Letra

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