OPÇÕES
Luísa foi mãe de 8 filhos, todos saudáveis. Vivia confortavelmente, embora não fosse proprietária de coisa alguma, para além de si mesma. O marido, de quem se havia separado pouco depois do nascimento do seu oitavo filho, morreu novo, vítima de acidente de aviação. Ela nunca voltou a casar, pois ficou com uma missão pesada demais, para voltar a dedicar-se a outra.
Formada em
engenharia civil, Luísa era uma mulher de grande determinação, a quem nunca
faltou tenacidade e coragem para levar a cabo a missão que propôs a si mesma:
dar a cada um dos seus 8 filhos, um curso superior. Todos eles se formaram em
diferentes áreas, com muito sucesso. O mais novo, o João, provavelmente porque
foi o que mais sofreu a superioridade do “poder” dos que nascem primeiro,
talvez sentisse a necessidade de sarar “certas feridas”, e optou pelo curso de
enfermagem. Ele sempre se revelou o menos vocacionado para grandes objectivos,
a vários níveis, o que provocou muitos conflitos entre ele e a mãe, pois ela
entendia que ser enfermeiro, não tinha o valor de outros cursos. Mas era um
filho maravilhoso, dócil e generoso e o curso de enfermagem não poria em causa,
nunca, a sua capacidade profissional. Bastava que fosse feito tomando em
consideração dois princípios que a mãe acabou por sentir resigná-la: vocação e
aplicação. Mas não foi fácil convencê-la na altura, de que, não obstante a
força destes dois pontos importantes, eles poderiam vir a revelar-se não
suficientemente fortes ao ponto de permitir que o filho mais novo viesse a
usufruir duma vida desafogada. Naquele tempo, ser enfermeiro não tinha o
prestígio que tem hoje.
Luísa sempre
enfrentou as suas dificuldades sabendo esperar, com muita resignação, que “cada
maré alta acalmasse”, na esperança de que, mais tarde e de cabeça fria, cada um
decidisse o que mais lhe conviria, não só pessoalmente mas, também, em prol da
estabilidade familiar. Era muitíssimo inteligente e ponderada, mas isso não lhe
evitou certos períodos que teve de ultrapassar, não dando nunca a conhecer aos
filhos, as suas dificuldades. Ela sabia bem que, se o fizesse, eles poderiam,
eventualmente, querer desistir dos seus cursos para irem trabalhar. Isso seria
a última coisa que teria de aceitar. Ela tinha consciência, por experiência, de
que o facto de ter tirado o seu curso, permitiu-lhe fazer frente às
consequências que a morte prematura de seu marido causou à sua vida. Era, no
fundo, uma mulher consciente e, sobretudo, muito perseverante. Paralelamente ao
bom ordenado que tinha, pela sua grande competência como engenheira civil, teve
a recompensa de 4 dos seus filhos terem sido beneficiados com bolsas de estudo,
o que lhes permitiu irem estudar para fora do país. Eles sempre tiveram a
sensibilidade de perceber que era necessário aplicarem-se e, consequentemente,
ajudarem a mãe, dando o meu melhor para atingirem o objectivo que ela propôs a
si mesma, para eles: uma boa formação.
João não queria
casar. Talvez tivesse consciência, também, de que não estaria à altura de
garantir um futuro estável à sua futura família, se um dia viesse a casar. O
exemplo que a mãe lhe deu era demasiado forte, tendo-lhe criado a convicção de
que, para casar, deveria estar à altura de garantir-lhe a referida estabilidade
económica… e não só. Por isso mesmo, sempre viveu com a mãe. Os irmãos foram
casando, foram abandonando o lar de infância e foram-se libertando da ajuda da
mãe, que vivia agora feliz, sempre visitada pelos filhos e pelos 14 netos com
que foi presenteada. Sim, porque os netos eram, a partir do dia em que deixou
de trabalhar, a grande força que mantinha nela um enorme apego à vida.
Os anos foram
passando e Luísa começou a revelar sintomas preocupantes de perda de memória e
de uma certa indiferença em relação a coisas que, anteriormente, eram-lhe tão
importantes. Isso começou a acentuar-se de tal forma, que o temível diagnóstico
dado pelo seu médico, não surpreendeu os filhos: a mãe sofria da doença de
Alzheimer. Face a essa realidade, eles tinham consciência de que sua mãe iria
precisar, cada vez mais, de assistência permanente, uma assistência que eles,
naquele momento, não estavam à altura de assumir, sob pena de perderem o
controlo da situação que, havia alguns anos e com tanto sacrifício, tinham
conseguido. Não se tratava apenas duma estabilidade a nível de trabalho.
Tratava-se de outras responsabilidades que cobriam os seus tempos livres, sendo
a mais importante a de dar aos filhos o que a mãe sempre soube dar-lhes,
ajudando-os nas responsabilidades académicas e na gerência dos seus tempos
livres. A educação dum jovem cada vez mais exige a participação consistente dos
pais. Assim sendo, havia que tomar decisões muito importantes, uma vez que
colocar a mãe numa instituição para pessoas idosas, privada ou não, estava em
último lugar nas suas várias opções, opções essas que queriam analisar tendo em
conta vários factores, sendo o mais importante o do valor que a mãe
representava para eles e que era indiscutível. Ao mesmo tempo, para
considerarem a hipótese com mais força e também a mais desejada por todos, que
era a de serem eles mesmos a assistirem a mãe na sua doença, precisariam de
saber em que medida essa assistência poderia ser dada e o quadro era
"negro". Nenhum deles tinha uma formação na área de medicina. Só o
irmão mais novo estaria, de certa forma, capaz de olhar pela mãe. Para além de
tudo o que pudessem vir a decidir, todos os irmãos tinham consciência de que
Luísa tinha sido sempre aquela mãe que tantos sacrifícios fez e que tão difíceis
momentos viveu, para que estivessem tão bem, em todos os sentidos. Merecia tudo
o que pudesse dar cada um para, em dias alternados, poderem estar presentes.
Com o passar do
tempo, a doença de Luísa foi agravando e começaram a preocupar-se com o irmão
mais novo, pois eles sabiam do tanto que estava já a menosprezar na sua vida
profissional, a favor do bem-estar da mãe. Eles sentiam que ele não iria
aguentar com tudo, pois sua mãe necessitava, cada vez mais, de cuidados
permanentes. Só haveria, aparentemente, uma solução: internar a mãe numa
instituição onde fosse bem tratada. Contudo, para João havia uma coisa de que
ele não prescindiria: da presença de sua mãe, enquanto viva. Ele tinha perfeita
consciência de que, independentemente das opções que fez, a nível de formação
académica, sua mãe teria sacrificado muitas das suas aspirações para poder, ela
própria, abrir-lhe a estrada que melhor o conduzisse à situação em que se
encontravam os seus irmãos. Tinha consciência perfeita de que sua mãe sempre
soube estar presente nas suas decisões, não o forçando a nada,
independentemente de todas as chamadas de atenção para uma realidade que era
sua, muito pessoal, e que ele reconheceu sempre ser a que melhor lhe conviria.
Vá-se lá saber como tinha disso a percepção… Provavelmente, sendo o oitavo,
nasceu fora do projecto familiar…. e talvez pensasse que a sua missão, para
além da de filho, seria a de provar que não tinha vindo ao mundo por
acaso. Por tudo isso, teria achado que
deveria tomar a decisão que o seu coração andava a ditar-lhe havia já algum
tempo e acabou por deixar o hospital onde trabalhava para dedicar-se,
inteiramente, à mãe.
Muitas vezes insurgimo-nos contra situações
que, mais tarde, vêm a provar-nos não ter sido por acaso que optámos por elas,
sem que disso tenhamos a percepção.
Luísa morreu
rodeada do carinho de toda a família e foi exactamente o filho mais novo,
aquele filho com quem nunca esteve de acordo sobre o curso a seguir, que veio a
provar, a ela e aos irmãos, ser o que mais conviria seguisse, pois foi esse
mesmo curso que lhe permitiu ajudar sua mãe no pior momento da sua vida, até à
sua morte.
Depois de Luísa
falecer, João completou o curso de medicina com uma média de que poderia
orgulhar-se: 19 valores. Acabou por casar-se e vir a ser pai de quatro meninas
e um rapaz que seriam hoje o orgulho da sua avó Luísa, que não conheceram, mas
que, onde quer que esteja, se estiver, sentir-se-á feliz.
Não menosprezemos
as decisões de cada um. A razão por que, muitas vezes, optamos por seguir uma
estrada que, aos olhos dos outros, parece errada, pode permanecer oculta até ao
dia em que um programa, que nos transcende, venha a confirmar ter sido a que
nos convinha. Há que saber esperar por resultados que podem demorar anos a
surgir.
Maria Letra
2014-04-08