De velhas raizes minhas,

umas vivas, outras mortas,

retirei ervas daninhas

p’ra poder abrir mais portas.


20141113

O SILÊNCIO DOS CORVOS




N.º de registo: 802

O SILÊNCIO DOS CORVOS



Oriundo duma família abastada, Aabdeen formou-se em Medicina muito jovem ainda, com uma média da qual se orgulhava e tinha orgulhado os seus pais. Tinha optado pela investigação científica, razão pela qual continuou a estudar, mesmo depois de completar o curso que escolheu. Ávido de atualizações constantes, não tinha a preocupação de saber até onde deveriam chegar os seus conhecimentos. Era um homem honesto, amigo da sua família - que sempre respeitou - e muito considerado no meio científico pelo trabalho que estava a desenvolver, em busca da cura de doenças que se mantinham difíceis de debelar. Ele tinha consciência de que a área a que se dedicou envolvia interesses de vária ordem, mas ele sabia, também, que a sua dedicação lhe vinha da alma e, consequentemente, entregou-se a esse trabalho duma forma total e incondicional. Mesmo sabendo que tanto a medicina alopática, como a alternativa, são controversas e as curas até então dadas como eficazes, questionáveis, o que importava era entregar-se a essa tarefa com consciência absoluta dos objetivos a que se propôs quando escolheu aquela especialidade. Sabia muito bem que durante longos anos continuaria ainda a dúvida sobre o que era, ou não, desejável e eficaz, quando de doenças graves se tratava. Aabdeen insistia na busca de respostas, explorando causas e efeitos que lhe permitissem chegar onde queria: à descoberta de curas até então não conseguidas. Vivia uma vida feliz, fazendo com verdadeira paixão aquilo de que gostava. Era casado com Safá, uma ex-colega da Universidade de Oxford, no Reino Unido, onde estudaram os dois. Ela era uma mulher cheia de virtudes, a quem podia confiar a educação dos seus 5 filhos; era a mulher com quem, qualquer homem, desejaria ter casado. O seu amor e a paixão que sentia por ela tinham sido a melhor coisa que lhe tinha acontecido. Amavam-se muito e viveram muito felizes até ao malfadado dia em que iniciou a guerra que viria a descontrolar completamente a harmonia do seu lar.
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Aabdeen acordou eram 4h da madrugada. Tinha adormecido vestido, em cima daquela cama massacrada pelas suas voltas e reviravoltas em busca duma inspirada ideia que o libertasse, a ele e à sua família, da guerra que estava a destruir o seu país havia já seis longos anos. Tratava-se duma guerra cujos invasores tinham propósitos que nada tinham a ver com problemas internos do país. Os interesses dos invasores seriam bem outros, assaz difíceis de aceitar ou mesmo de compreender pela sua complexidade, mas que não escapavam à observação dos mais informados. Era uma guerra permanente, sem aparente solução, que tinha espalhado o terror e a desordem num país onde, até ao seu início, se vivia pobremente, mas em paz. Seus pais tinham falecido há 2 anos, aproximadamente, vítimas de um dos bombardeamentos e a sua mulher estava, agora, bastante doente. Ele não sentia conseguir ter a paz e a concentração necessárias para suportar continuar a viver assim, entre paredes testemunhas silenciosas dum sofrimento sem tréguas. Tinha uma enorme responsabilidade às suas costas. Os seus 5 filhos careciam duma protecção que, sozinho, não estava a conseguir dar-lhes. Sabia que iriam continuar a ouvir, por tempo indeterminado, o som do já longo período de bombardeamentos contínuos, contra um país sacrificado. Guerra por quê? Contra quem? Onde estavam os alvos a atingir? Seriam justas as causas dessa luta que estava a assassinar tanta gente, gente essa vivendo há tantos anos a angústia de poder ver chegada, em qualquer momento, a sua hora de morrer, também, sem culpas? Com que coragem continuavam os verdadeiros responsáveis a engendrar sucessivos discursos de consciencialização dum povo maioritariamente ignorante, sem respeito por quem, entre estes, já tinha há muito percebido bem quais os hediondos objetivos duma escumalha de corvos sedentos de interesses? Discursar para convencer quem? Aqueles em quem a ignorância se instalou sem bilhete de regresso? Aqueles que acreditavam nas verdades mentirosas que despejavam pela boca fora? Era já insuportável ouvir – quem ainda tivesse essa possibilidade... - os discursos que, tal como os bombardeamentos, eram “cozinhados” por países envolvidos naquele massacre atroz. Aabdeen já não estava em condições de querer saber quem e o que estaria por trás dos bastidores daquela guerra. Urgia descobrir o que fazer para salvar a sua família daquele calvário. Enquanto Safá teve o controle do lar e da família, Aabdeen pôde trabalhar, ajudando nos hospitais os sobreviventes daquela maldita guerra. A partir do dia em que Safá adoeceu, ficando impotente para tomar conta da casa e dos filhos, convenientemente, a instabilidade emocional deles e dela própria, instalou-se no seu lar e ele sofreu um rude golpe. A despeito da realidade duma guerra cujo fim continuava imprevisível, até ali tudo tinha continuado de forma mais, ou menos, suportável. Com a colaboração da mulher, em casa, Aabdeen pôde permanecer nos hospitais ajudando os sobreviventes, sempre com uma entrega e uma dedicação sem limites. Mais do que preocupar-se com os temíveis responsáveis por essa guerra, Aabdeen tinha a sua mente ocupada com cada caso que se lhe deparava naquele banco de urgências onde procurava salvar vidas mesmo tendo consciência de que poderia estar a fazê-lo a alguém que, eventualmente, acabaria morrendo quando transpusesse a porta do hospital. Os responsáveis, esses continuavam, obviamente, a salvo afim de poderem alimentar aquele estado de sítio em que viviam e que se sentia em cada corpo que caía por terra. Os bombardeamentos a que, malogradamente, se habituaram, continuavam com a mesma intensidade com que se tratavam vidas cujas almas já estavam mais no espaço do que dentro daqueles corpos sofridos. Com a saúde da sua mulher, partiu aquilo de que Aabdeen sempre se havia orgulhado: o controle emocional da família que, a despeito da guerra, continuava a sobreviver, enquanto ele salvava – ou não – vidas que, diariamente, entravam naquele hospital local.
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A casa de Aabdeen foi bombardeada nas primeiras horas da manhã dum fatídico dia tão frio quanto o coração daqueles que, com uma coragem selvagem, perpetram habilidosa e inteligentemente meios para conseguir os seus ardilosos fins. Felizmente ninguém saíu ferido, mas o trauma daquelas crianças foi enorme. Querendo pôr a salvo a mulher e os filhos, Aabdeen negligenciou tudo, e procurou libertá-los daquele monte de escombros, poeira e cheiro a queimado. Saiu para a estrada em busca de refúgio para a família. Impossibilitada de caminhar, Sagá era o seu maior problema. Com a ajuda de algumas pessoas, conseguiu levá-la a ela e aos filhos para uma área comum onde dezenas de outras famílias passariam a viver. Aabdeen tinha, agora, a sua missão mais complicada, pois além da sua família, tinha também de cuidar de quem com eles partilhava aquele antro de vidas humanas com um inimigo comum: a guerra. Todas as ajudas ali eram poucas e inconsistentes. Aabdeen sabia que, de certo modo, a amplitude das suas muitas aspirações humanitárias de pesquisa científica, para salvar vidas, estaria condenada, até que a guerra acabasse. Se, por um lado, a sua consciência de médico e de cidadão o atraía aos hospitais, por outro lado tinha a consciência de que a sua responsabilidade tinha passado, então, a ser maior. Ele não poderia abandonar a sua família. Quando a guerra iniciou, o seu filho mais velho tinha 3 anos, o do meio tinha 21 meses e os mais novos, gemeos, tinham 5 meses. Depois da sua casa bombardeada, apoderou-se dele o desejo crescente de emigrar. O clima que se respirava naquele espaço cheirava a um ninho feito das penas dos mesmos corvos que cantavam discursos que já ninguém queria ouvir. Eles tinham conseguido dinheiro suficiente para conseguirem libertar-se e, portanto, havia que pôr em prática um plano de fuga. Com os aeroportos encerrados, Aabdeen via a sua possibilidade de sair do seu país diluir a olhos vistos. Mais ainda, o estado de saúde de Safá piorava de dia para dia e ele não sabia o que fazer. Depois da morte de seus pais, ele nunca mais teve notícias do seu irmão, o que o levava a admitir a hipotese de ter morrido também. Aabdeen sentia-se como que enfiado num labirinto com a família, sem saber qual direção tomar. Qualquer que fosse a sua decisão, exigia dele uma responsabilidade muito grande. Embora estivesse consciente de que a saúde da mulher estava em perigo e que só num país que não estivesse em guerra conseguiria tratá-la convenientemente, ele continuava sem poder fazer fosse o que fosse. Seguindo o exemplo dos pais, qualquer decisão passaria pela prévia convicção do que mais conviria à família e, portanto, ela deveria passar por um acordo entre ele e Safá. Haveria que ponderar bem os riscos a que submeteria a sua mulher e os seus filhos, qualquer que fosse a decisão que tomasse. Mas Aabdeen era um homem de profunda reflexão e sempre que se lhe deparava um problema exigindo ponderação, recorria a três pilares de sustentação da posição a tomar: a vontade da família, a consciência do que mais convinha a todos e tanta coragem. Era um bom gestor de responsabilidades, todavia, a que deveria tomar, urgentemente, ultrapassava os
limites da sua capacidade de decisão. A crescente instabilidade no comportamento das crianças, era evidente. Ele sabia que a atmosfera que se havia gerado com a guerra, com o ruído dos permanentes bombardeamentos, a doença de Safá e a sua consequente fragilidade ao cenário e, por último, a destruição da sua casa, havia desencadeado o caos emocional na família. Não foi fácil decidir, mas Aabdeen optou, definitivamente, por emigrar. Urgia levar a mulher para o hospital dum país onde não houvesse guerra, onde o silêncio dos corvos fosse uma realidade. Não queria ouvir mais o ruído atroz dos bombardeamentos que calavam as crianças e as aves e onde o silêncio era tão desejado quanto o pão que os alimentava. Tendo optado, finalmente, por deixarem o seu país e refugiar-se com a família no Reino Unido, voltando a Oxford, aproveitaram a abertura de um dos aeroportos locais e deixaram para trás a dor, o terror e a instabilidade em que cairam.
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Depois duma longa espera de 3 dias para saber o resultado dos exames feitos à mulher, Aabdeen enfrentou a realidade de um diagnóstico que já esperava. A anemia de Safá era crítica e ela deveria ser submetida a um tratamento muito rigoroso, durante bastante tempo. Contudo, animava-o o facto de estar convencido de que a opinião dos médicos do Hospital de Oxford, onde sua mulher estava internada, e a sua, eram de tal modo animadoras que o futuro se lhe afigurava bastante menos pesado do que aquele que viveu anteriormente, vendo Safá a piorar de dia para dia. Alugou uma casa em Oxford e procurou emprego na sua area, a da investigação científica. Matriculou os filhos num bom colégio, naquela localidade, onde tudo lhe parecia, agora, muito mais fácil. Safá ficou internada durante algum tempo. Já não existia nela aquela obstinação de não querer separar-se dos filhos, nem a sua recusa de submeter-se ao tratamento de que carecia. Para trás ficou o país que amavam, mas onde a vida era um inferno. O terror implantou-se naquela terra de maldição.
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Safá deixou, finalmente, o hospital e regressou ao lar que seu marido e seus filhos tão bem haviam decorado para recebê-la. Em cada canto da casa respirava-se o amor e a paixão com que o fizeram, para que ela se sentisse bem e feliz.
Aabdeen, Safá e seus filhos eram, agora, mais uma nova família a viver num país que não era o seu, mas onde sentiam, duma forma profunda, o significado do silêncio dos corvos e duma paz genuína conseguida através da cooperação e de sãos objectivos e não de discursos recheados de promessas despidas de autenticidade. Para Aabdeen o trabalho de investigação científica era, agora, uma realidade. Ele tinha conseguido, finalmente, juntar-se a outros cientistas para poderem em conjunto, duma forma mais universal, trabalhar para a descoberta de curas por que a humanidade anseia.

FIM

Maria Letra

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